Arte e Esquizofrenia
- Alayde Mestieri
- 30 de jan. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 9 de fev. de 2024

Os delírios e alucinações individuais que a norma da sociedade repudia, e que na idade média eram encarados como produtos de bruxaria, constituem a fabricação do louco. Existe farto material de alucinações e delírios, que irrompem com a fragmentação do Ego e são projetados em telas ou nas paredes do hospital psiquiátrico. Porém, a sociedade nega-se a reconhecer o estatuto da genialidade que o doente mental pode apresentar.
Segundo Carl G. Jung, os arquétipos míticos são de cunho universal, envolvem a realidade do homem, e é exatamente para aí que fluem as imagens do mundo esquizofrênico quando o Ego se esfacela. Travam-se lutas fabulosas nesse terreno.
A terapia ocupacional de alguns hospitais psiquiátricos, como o hospital Pedro II, no Rio de Janeiro, utiliza meios individualizados de expressão, como oficina de encadernação, marcenarias, costura, trabalhos manuais femininos, danças folclóricas, recreação e em especial os ateliês de pintura e modelagem.
Um crítico de arte visitou um dia o que os loucos vinham criando e ficou admirado com a qualidade da produção plástica. ”Uma das funções mais poderosas da arte é a revelação do inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado anormal. Essas imagens são uma linguagem simbólica a ser decifrada. Ninguém impede que essas imagens e sinais sejam, além do mais, harmoniosas, sedutoras, dramáticas vivas ou belas, constituindo em si verdadeiras obras de arte”(Correio da Manhã, 1.947, crítica à 1ª exposição pública de 245 pinturas de internados)
A Dra. Nise da Silveira, fundou o Museu de Imagens do Inconsciente (1.952) e viu a possibilidade de estudar cientificamente a produção pictográfica, um meio de acesso ao mundo de imagens em que o esquizofrênico vive mergulhado, mais hermético ainda, via linguagem verbal. Desde as pinturas a óleo e os rabiscos, são cuidadosamente arquivados e catalogados. Formando seqüencia de imagens que permitem acompanhar o desdobramento do processo psicótico em cada indivíduo, bem como a reunião de imagens referentes ao mesmo tempo, produzidos por autores diversos.
“Para quem teve seu Ego fragmentado, desorganizadas as funções de orientação do consciente, caídos os diques que mantinham o inconsciente a distância, revela-se a psique subterrânea, deixando descoberta a sua estrutura básica e permitindo que se tornem perceptivos seus processos arcaicos de funcionamento”. Não têm medida as profundidades da psique que a produção plástica de esquizofrênicos nos pode fazer vislumbrar.
“O artista raramente desce ao inconsciente, ao reino obscuro, confuso e essencial das verdades e instintos da espécie, coletivos, portanto, mas já tão inacessíveis ao homem condicionado pela sociedade.” O louco vai até lá, inteiramente liberto das leis, evadido da lógica consciente e até das imposições das exterioridades perturbadoras. Por isso é que desce ao fundo do poço e traz da sua incursão alguma revelação temível e comovente. Se além de louco esse indivíduo é artista, os resultados são os mais estranhos e admiráveis. - Sergio Milliet.
É surpreendente verificar a existência de uma pulsão configuradora de imagens sobrevindo mesmo quando a personalidade está desagregada. Alguns doentes podem nunca ter pintado antes da doença, porém manifestam intensa exaltação da criatividade imaginária, que resulta na produção de pinturas em número abundante. Pintar seria agir.
Foi notada a quase ausência da figura humana na produção plástica dos esquizofrênicos e também das formas orgânicas em geral. Predominam a abstração, a estilização e o geometrismo. Essas características foram atribuídas a um processo regressivo que iria da desumanização, não figurativismo, estilização, geometrismo, até a dissolução da realidade.
Nessa sequencia, a expressão plástica revela continuado esfriamento da afetividade, desligando cada vez mais do mundo real.
O doente mescla muitas vezes ao abstrato as formas definidas dos símbolos, consistentes, objetos utilitários, seres fantásticos ou reais, tudo dependendo de suas situações interiores.
O esquizofrênico tem uma perturbação da maneira de sentir o espaço. Sentem a sala repleta de cor, ou um campo pode aparentemente estender-se infinitamente sob luz branca cintilante, ou o próprio quarto torna-se ás vezes enorme, com uma claridade ofuscante. O pensamento torna-se substância e a pintura é a expressão do pensamento.
Na condição psicótica, os dois sistemas de percepção interno e externo, muitas vezes se mesclam, espaço interno e externo se interpenetra. A expressão plástica vai tornar visível esse fenômeno através das imagens.
A pintura permite que o “invisível se torne visível”. A luta entre ego e o inconsciente, que define a esquizofrenia, onde o ego fraqueja é derrotada diante do ataque violento do inconsciente. E o mundo externo desorganiza-se como num terremoto. Isso pode-se ver retratado nitidamente em várias pinturas dos doentes. Toda obra de arte é um documento psíquico. É através da estruturação do espaço que poderemos entender as relações do indivíduo com o meio onde vive e a ideia que o homem faz da ordem cósmica.
Na criação da obra de arte o homem engaja-se numa luta com a natureza, não pela sua existência física, mas pela sua existência mental. A reconstrução do espaço cotidiano acompanha a reconstrução do ego. Além das interrogações ligadas ao valor artístico da pintura ou desenho dos esquizofrênicos, os problemas ligados à abstração, existe outro fenômeno surpreendente: a constante tendência ao agrupamento à simetria, à disposição de elementos díspares em torno de um centro, e, sobretudo o aparecimento de círculos regulares simultaneamente com as desintegrações de formas típicas do desenho e da pintura de esquizofrênicos.
Aparece o desmembramento de corpos humanos ou de animais, corpos sem cabeça ou sem braços ou sem pernas, ou árvores cortadas em pedaços, podendo significar o despedaçamento da personalidade. (dissociação psíquica). Alguns artistas famosos enfrentaram fases de sérias perturbações mentais, agravadas no final da vida, com perda ou intensificações de criatividade, ao mesmo tempo, foram artistas sem par e loucos, em momentos distintos ou idênticos.
Entre muitos podemos citar Vincent Van Gogh.
“Por que tantas vezes a criatividade, como um bicho ferido, explode em forma de loucura e destruição”.
Em um domingo ensolarado do mês de julho do ano 1890, perto do povoado Auvers Suroise, ao norte da França, uns camponeses ouviram um disparo, correram em direção do som e encontraram um homem caído, ferido com um tiro no peito; o revolver ainda fumegante encontrava-se na sua mão direita.
-“ É o pintor louco”- falou um deles.
_ “Se chama Van Gogh! Anteontem estava aqui, com seu cavalete, pintando o campo de trigo”. (Dois dias depois, em 29 de julho, o pintor louco morria.)
V.V. Gogh 1853-1890
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